Seguem as observações do Colegiado de Letras:
Notas sobre a minuta de anteprojeto
de resolução em substituição à
Resolução nº 30/90-CEPE
A minuta menciona duas finalidades específicas: “explicitar a concepção curricular orientadora dos Projetos Pedagógicos de Curso” e “proporcionar, mediante a elaboração e reformulação dos currículos plenos, as melhores condições para o desenvolvimento do ensino”.
A primeira finalidade pode ser entendida como legítima, especialmente em vista de uma atualização das questões de base que fundam a resolução de 90 e do consequente movimento de reformulação curricular que essa atualização viria mobilizar na instituição.
Cabe ressaltar, no entanto, que o compasso histórico de atualizações curriculares é muito diferente de curso para curso. Portanto, se é possível identificarmos cursos, em nossa instituição, que pouco se transformaram nessas últimas duas décadas e meia, é também possível indentificar cursos que passaram por inúmeras reformas curriculares nesse mesmo tempo. Este é o caso do curso de Letras da UFPR, que, no intervalo dos últimos 25 anos, realizou autonomamente quatro reformas e está em vias de implementar a quinta. Não será por mero acaso que esse curso e seus egressos vêm recebendo historicamente uma avaliação muito positiva e de destaque no âmbito nacional da área de Letras. Essa condição singular pode ser lida como um índice relevante de que o corpo docente (que atende as demandas do referido curso) e as instâncias colegiadas (que discutem e realizam sua gestão acadêmica) vêm realizando seu trabalho de maneira adequada, não havendo, assim, justificativa plausível para que se lhe imponham diretivas externas de reformulação, que, além de ferirem a autonomia de suas esferas mais imediatas de representação colegiada, não respeitam nem têm qualquer relação com sua história particular.
Quanto à segunda finalidade, embora equacionada nos termos do binômio reformulação curricular versus melhores condições de ensino, é preciso ler atentamente a minuta para que dela se depreenda o sentido mais específico do “ganho qualitativo” em questão.
O detalhamento dos objetivos específicos oferece-nos os primeiros subsídios para uma melhor compreensão do horizonte diante do qual se articula de fato essa proposta. São dois os objetivos mencionados: a “definição de política de organização curricular fundamentada nos princípios de legalidade, equidade e qualidade social” e a “previsão da inserção de programas e projetos de extensão universitária na matriz curricular dos cursos de graduação em atendimento à Lei nº 13.005, de 25/06/2014, que trata do Plano Nacional de Educação”.
O primeiro objetivo tem uma formulação genérica, abrindo inúmeras possibilidades de compreensão e operacionalização. A minuta, no entanto, ao invés de preservar o caráter aberto e genérico desse objetivo – reservando aos fóruns competentes a tarefa de discussão e deliberação sobre o assunto –, oferece instruções que se impõem com força normativa, à revelia da história e das especificidades de cada curso.
A primeira instrução diz respeito à promoção de um “aproveitamento integral da duração do ano letivo determinado pela legislação”. Mas a proposta de um calendário de dezoito semanas letivas é, quando muito, apenas uma dentre uma série de possibilidades operacionais para atingir esse objetivo específico. Em outras palavras: não há nada que relacione inequivocamente o cumprimento desse item da legislação a essa proposta de calendário; tampouco há qualquer razão para assumir que essa proposta possa ser válida como fórmula universal de melhoria da qualidade de ensino. É direito e dever de cada curso deliberar a esse respeito nos fóruns legitimamente constituídos para esse propósito. A manutenção da autonomia dos fóruns competentes é garantia maior de qualidade nas decisões do que qualquer medida genérica que se imponha sem o respeito das singularidades de cada curso. Não será demais recordar que, por ocasião da adequação das propostas curriculares das licenciaturas ao disposto no artigo 65 da Lei no 9.394/96, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão desta Universidade, por meio da resolução 89/00-CEPE, consagrou precisamente o princípio da autonomia dos Colegiados de Curso, bem como das instâncias articuladas através de cada um deles – Setores e Departamentos – para a definição das formas de adequação das diferentes propostas curriculares das licenciaturas àquele dispositivo legal (cf. http://www.ufpr.br/soc/descarregar_arquivo.php?cod=61), respeitando-se, assim, as especificidades de cada curso.
A segunda instrução de operacionalização do primeiro objetivo cumpriria o fim de “garantir que os cursos de graduação e educação profissional [...] disponham de parâmetros para distribuição das cargas horárias, quer ao longo dos semestres, quer internamente na divisão entre as categorias de atividades didáticas, contribuindo para agilizar os processos formativos e estabelecendo uma base equitativa para alocação do trabalho docente”. Ora, seria desnecessário lembrar que não existe um curso sequer, nesta instituição, que não disponha de tais “parâmetros” para a organização de seus empenhos acadêmicos. O que a redação da minuta não afirma explicitamente nessa passagem – preferindo dar a entender que os cursos seriam carentes de tais parâmetros – é o que parece de fato estar em jogo: a padronização e a imposição de um conjunto de parâmetros externos, à revelia do que a experiência de cada curso mostrou ser a fórmula mais adequada – e historicamente em discussão – em cada caso específico. Não há razão alguma para supor que uma padronização como esta se ofereça como fórmula mais eficaz (no horizonte da melhoria da qualidade de ensino) do que as diferentes fórmulas utilizadas nos diferentes cursos da UFPR. As mesmas observações são válidas, também, para as outras três instruções elencadas nesse primeiro objetivo.
O segundo objetivo aponta para uma necessidade de adequação curricular às diretrizes da Lei nº 13.005, a qual, justamente por sua força de lei, já se impõe, por si mesma, como objeto de responsabilidade das coordenações de curso. É tarefa de uma Pró-reitoria cobrar o cumprimento de tal obrigação. Os termos e o modo como essa adequação deve ser feita em cada curso, porém, não cabe como objeto de resolução de caráter geral, e, sim, como tema de debate e deliberação nas instâncias colegiadas imediatamente competentes.
Destacando reiteradamente o binômio reforma-qualidade, a proposta declara que o cumprimento de tais objetivos seria um modo de operacionalizar a segunda finalidade da proposta ou, nos termos do documento, daria ocasião à “reformulação dos componentes das matrizes curriculares atuais com vistas à melhor qualidade do ensino”. Não fica claro, no entanto, nem porque nem como uma proposta genérica e padronizante como esta – que ignora a heterogeneidade do espaço da “universidade”, assim como suas instâncias legítimas e suas vozes competentes – poderia de fato resultar em melhoria e desenvolvimento do ensino na UFPR.
Os entraves à melhoria da qualidade de ensino, mencionados ao final da p.2 da minuta, podem ser válidos e decisivos em alguns cursos de nossa instituição. Mas há também inúmeros cursos que já detectaram estas e outras “barreiras” em suas avaliações contínuas e que vêm investindo há décadas em modos de aprimoramento. O mesmo é válido para o destaque das experiências positivas, ou o que a minuta chama de “currículos inovadores”. Se há, por um lado, inúmeras razões para a troca de experiências entre os coordenadores de cursos inovadores e aqueles que coordenam cursos deficitários, não há razão alguma para crer que esses modelos inovadores, por mais eficazes que se mostrem em seu contexto específico, possam se revelar igualmente eficazes quando aplicados em outros cursos. Enfim, o documento generaliza sintomas particulares (negativos e positivos) e propõe ações universais como forma de combatê-los, ao invés de abrir espaço para que cada uma dessas questões seja resolvida individualmente.
Isso para não mencionar o fato óbvio de que nem sempre tal estatuto de inovação curricular é objeto de consenso acadêmico. Daí que coexistam, nacionalmente, modelos diferentes de curso numa mesma área, sem que disso tenhamos necessariamente de inferir que uns sejam mais ou menos atrasados que os outros.
Vale destacar ainda, no documento apresentado, o movimento discursivo que pretende invalidar o argumento de que a proposta de 18 semanas letivas seria prejudicial às atividades de extensão e de pesquisa – discussão esta que vem sendo empreendida amplamente pela representação sindical de nossa instituição. O foco de contra-argumentação da minuta reside na ideia de que a visão corrente identificaria a figura do professor como elemento integrador das instâncias de ensino, pesquisa e extensão – ao invés de entender essa integração a partir do contínuo pedagógico “professor-aluno”. A partir desse contra-argumento, devemos concluir então, como leitores, que, deslocando-se o eixo do princípio de indissociabilidade para a relação “professor-aluno”, um aumento das semanas letivas não impactaria de fato como uma forma de prejuízo.
Caberia questionar, aqui, o pressuposto de que o argumento do impacto prejudicial estaria fundado numa identificação da figura do professor como eixo do princípio de indissociabilidade. Mais cabível seria pressupor – já que é apenas no nível das pressuposições que a discussão do documento se articula – que a maioria dos colegas docentes subscreveriam a ideia – apresentada, no entanto, como contra-argumento – de que esse eixo se funda no contínuo “professor-aluno”. Aliás, é justamente por identificar nessa relação professor-aluno o eixo do princípio de indissociabilidade que o aumento para as 18 semanas letivas impacta de modo prejudicial nas esferas da pesquisa e da extensão. Em particular, porque o espaço de ação do professor – quando ativo nas instâncias de ensino, pesquisa e extensão – e do aluno universitário não se restringe aos limites de sua unidade administrativa. O elo professor-aluno, no caso particular da pós-graduação, por exemplo, só se completa com a circulação dos professores por outras instituições, especialmente nas bancas de qualificação e de defesa de mestrado e doutorado (assim como nos programas de convênio bilateral, de mestrado e doutorado interinstitucional, etc.). Isso para não mencionar a importância e a relevância (para a formação, para a pesquisa e para a divulgação científica) da participação de alunos e professores nos fóruns políticos e científicos de cada área (colóquios, seminários, simpósios, congressos, associações, etc.).
Podemos dizer que se evidencia, na contra-argumentação apresentada, uma visão demasiadamente restrita de Universidade, que ignora categoricamente a circulação de docentes e discentes no contexto mais amplo do sistema acadêmico-universitário brasileiro, circulação esta que seria fortemente constrangida por um aumento do calendário letivo nos termos propostos pela minuta e que teria, como resultado imediato, uma redução concreta de seis semanas anuais no calendário de toda sorte de atividades acadêmicas realizadas para além dos muros da instituição.
Diante do exposto, fica claro que a minuta apresentada não faz mais do que impor autoritariamente uma proposta genérica e redutora, desrespeitando a heterogeneidade dos cursos, ferindo a autonomia das diversas instâncias colegiadas e ignorando todo um conjunto de atividades acadêmico-formativas que se realiza não apenas fora da sala de aula, mas também em nível regional, nacional e internacional. Tendo em vista que os poucos argumentos apresentados são demasiadamente frágeis, discutíveis e imprecisos como justificativa de ação tão imperativa, assim como descabidos como garantia universal de melhoria do ensino, ficam os leitores com dúvidas quanto às motivações reais e concretas por trás da proposta. Eis um debate a ser realizado, em caráter de urgência, no amplo espaço da comunidade universitária: de nossa instituição, mas também das instituições de que dependemos e com as quais colaboramos.
Curitiba, 11 de dezembro de 2015
Colegiado de Letras
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